quarta-feira, 10 de junho de 2015

Território do Brincar: um filme para nos fazer pensar. E aprender a brincar

Viagem de carro. Percurso corriqueiro agora, entre Campina Grande e João Pessoa, na Paraíba. Cerca de 120 Km. Eu estava no banco de passageiros, Morena, minha filha de pouco menos de cinco anos, na sua cadeirinha, atrás. Ouvi sua voz, como se conversasse com alguém. Percebi que não falava comigo, mas consigo. Olhei para trás e vi que tinha um semblante de alegria. Não resisti e perguntei o que ela estava falando. “É uma brincadeira que eu inventei, mãe. Para as pedras pequenas, digo ‘pequena’. Para as grandes, digo ‘grandes’”. Meu semblante passou a ser de alegria também e até brinquei de observar o tamanho das pedras na estrada, junto com ela. Fui tomada por uma sensação boa, de contentamento, por ela estar observando as coisas, o caminho, o percurso. Porque fora capaz de inventar uma brincadeira e se entreter e se divertir com ela. De repente, a brincadeira tão simples me dava um aval para a opção de não termos tantos produtos eletrônicos e de não disponibilizar tão facilmente os que possuímos, de não termos o carro cheio de aparelhos de DVD, de oferecer à pequena a oportunidade de olhar para os lados, de ver, fazer conexões, imaginar, criar, inventar uma brincadeira num caminho. Não gosto muito de comparar tempos, infâncias. Vejo que seria impossível para a minha filha viver da mesma forma que eu ou seus avós viveram. Isso é a passagem do tempo, são as mudanças, o futuro, com seus ônus e bônus. Mas acredito, e já escrevi aqui sobre isso, que aparelhos como celular, tablet, dvd, vídeo games podem e devem ser evitados, adiados, postergados, sem que isso signifique qualquer prejuízo a uma criança, principalmente na primeira infância. Mais uma vez cito a pedagogia Waldorf como indutora desse comportamento. Ela que me mostrou a força de panos, tocos, brinquedos simples de pano e de madeira para despertar a imaginação e fazer a criança brincar e, nesse brincar, vivenciar desafios, limites, sonhar, aprender, crescer. Embora tente manter um pouco dessa linha em casa, tomei um choque e senti meus esforços como mínimos ao assistir ao filme Território do Brincar, que felizmente, está sendo exibido em João Pessoa, onde moro há dois meses. Território do Brincar é um projeto (territoriodobrincar.com.br) que ganhou um longa-metragem, feito por Renata Meirelles e David Reeks. Preocupa-se com a expressão mais genuína da infância, como diz o site, o brincar. Na telona, um documentário ou um apanhado de imagens de crianças brincando Brasil afora. Não sei muito sobre a ficha técnica e, nesse momento, não quis pesquisar para não ser sugestionada no que senti sobre o filme. Mas li que as imagens foram capturadas em dois anos. Ali pode-se ouvir alguns diálogos e falas infantis e uma música maravilhosamente bem colocada do grupo mineiro Uakti. É preciso ter humildade para ver a película e constatar que, talvez, nossos filhos não precisem de todos aqueles brinquedos/parafernálias que julgamos que são imprescindíveis e que enchem nossas casas. Sim, já encheram a minha e foi difícil me desfazer de tanta coisa para alguém com tão pouco tempo de vida. E continuam a existir mais na linha ‘educativa’. E fica a pergunta martelando. Mas se não precisam de nosso consumismo e de tantos brinquedos que brincam por elas, do que precisam? Como posso contribuir para uma infância mais livre, criativa e feliz? A resposta que ficou no ar foi de que as crianças precisam de outras crianças, de espaços que possam explorar, de menos vigilância, precisam ficar um pouco com elas mesmas, sem nós adultos, em histeria para contornar desavenças, desarmonias entre elas e seus pares. No ‘Território do Brincar’ o foco não são crianças urbanas. São indígenas, ribeirinhas, quilombola, pobres, pensaríamos,enfim. São crianças inventoras. Como todas seriam se déssemos oportunidades. Brincam em grupos, comumente. A imagem que lembro de uma criança brincando só, foi justamente de uma urbana, que parecia estar em um apartamento, com uma casinha de madeira, que sei muito bem quanto custa. E é alto o valor. Nos sentimos tentados a sentir pena delas, às vezes. Pensamos no excesso das nossas casas e na escassez das delas. Mas seria muito pouco. Acho que elas se sentiriam tentadas a ter pena dos nossos meninos trancafiados, isolados, super monitorados e informatizados. São infâncias. São lugares diferentes de um mesmo tempo que vivemos. É surpreendente a destreza dos meninos e meninas. Manipulam facas, facões, serras, linha e agulha – talham, costuram, empinam e empilham seus brinquedos/criações, sobretudo, liberam sua emoção e inteligência criativa para forjar um mundo com suas próprias mãos. Reusam objetos encontrados em sucatas, no lixo, na natureza. Fazem engenhocas. Nos olhares deles, às vezes percebemos as sinapses acontecendo – quando aparentemente erram – como se houvesse erro no brincar – e retomam do começo, refazem, repensam, resolvem. Concentradíssimos. Campeões estão as brincadeiras de casinha, de cozinhar, até de verdade, de imitar um dia a dia que vivem como protagonistas lá, na telas. Mas nas nossas casas urbanas, penso que são como coadjuvantes, à medida em que podamos sua autonomia e esvaziamos sua condição de crianças. Campeões são as rodas, as cordas, as pipas. Campeões são os sorrisos. Campeão é o imperativo do faz de conta. Do polícia e ladrão. Das armadilhas para pegar caranguejo. O filme não aconselha, não censura, não é uma fábula deixando sua ‘moral da história’. Mas talvez seja. Talvez faça isso mesmo. Com sua maneira sutil, poética, musical, corajosa. Com seus silêncios e falas de crianças. Para mim, continua o desafio: se não precisam de nosso consumismo e de tantos brinquedos que brincam por elas, do que precisam? Como posso contribuir para uma infância mais livre, criativa e feliz? Luz, câmera, AÇÃO!!!!

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sobre lancheira, Bela Gil e nossa própria experiência com alimentação infantil em casa e na escola

No meu tempo se chamava lancheira – o objeto e o que se colocava dentro dele – para alimentar uma criança na escola. Levei a minha pelo tempo necessário e dela não guardo muitas lembranças. O cheiro sim, desse lembro e até com carinho. Um cheirinho quente, de misturas variadas. Mas hoje sou mãe. De uma menina de quase cinco anos. E bem nessa idade, com ela cursando o quarto ano na escola, tive a minha primeira experiência em preparar uma ‘lancheira’. Experiência traumática e que quase me tirou o juízo nos primeiros dias. Não sabia o que colocar, como acondicionar, como variar, como transpor para uma embalagem, a lancheira, o que ela costumava comer em casa, ou na sua escola anterior. Logo, ela me pediu para não levar certas coisas. Estava se sentindo constrangida pelas outras crianças e/ou adultos –não sei ao certo – pelo conteúdo de sua lancheira. A professora rogou a Deus que existissem mais pais preparando lancheiras parecidas. E a demora em uma timidez ou não familiaridade com a escola passou muito por aí, imagino. Para tentar resolver, busquei a própria Morena. Preguei que não poderia deixar de ser ela ou levar algo para comer, porque chamava a atenção dos outros. Se gostava, se queria, ia ter que não se importar com os demais. Não sei se foi uma fala “muito” para uma criança. Mas ela já se sente mais segura. E eu já sofro menos. Algumas coisas que ela adoraria comer, não vejo como mandar. Estamos descobrindo outras e algumas têm se repetido. Penso como num restaurante: uma entrada, um prato principal, uma sobremesa. Aí, ela tem levado frutas, banana natural ou assada, manga, mamão, melão, melancia, uva. Levado tapioca, pão integral, torradas. Castanhas do Brasil e de caju, rapadura, açaí. E coisas que vão surgindo: um bolo ou algo assim. Muitas vezes discuto com ela o que levar. Aí ela inventa: um potinho com geleia, um potinho com Nutela, um potinho com azeite, mel, requeijão, aveia com castanhas raladas. Haja potinhos e espátulas. Haja argumentos para dizer que o azeite vai derramar, que vou tentar achar uma embalagem que dê para mandar tal coisa... Até falta tempo para comer tudo. A professora se impressiona com a precisão com que passa um recheio numa torradinha. Quase pirei com tudo isso, no começo. Agora, me surpreendo com a agilidade com que já cumpro a missão. E ter a participação dela no cardápio é trabalhoso, mas divertido e importante para ambas. Escrevo sobre o assunto embalada na polêmica da lancheira preparara por Bela Gil, para sua filha, Flor. Lendo matérias sobre, pude elaborar melhor o que passei na minha estreia, o que já aprendi e o que ainda é desafio. Minha filha começou a vida escolar em Brasília, em escola que segue a pedagogia Waldorf. Lá, nos dois anos em que fez o Maternal, cada família levava uma feira às segundas, que durava a semana e alimentava toda a turma que, junto à professora, ajudava a preparar a refeição diária. Foi um aprendizado. Era algo de muita responsabilidade. Mas fazer as compras era muito bom. Orgânicos, frutas, verduras, vegetais, grãos, trigo para o pão que quinzenalmente preparavam e ainda levavam para casa. Na época, foi um choque ver a pequena Morena com uma faca na mão, certo dia, cortando batatas. Retruquei. A professora riu. Era só confiar, ensinar, dar autonomia. Comecei a aprender junto. Pouco depois, ela fazia isso em casa. Assim como quebrar os ovos que comíamos. E muitas outras pequenas tarefas. No Jardim, cada família levava o lanche diário para toda a turma. Um cardápio igualmente saudável, variado e querido pelas crianças, que incluía milho cozido, cuscuz, quibe vegetariano. No verdurão que frequentávamos, a dona dizia que ela sabia mais nomes de frutas e verduras do que seu próprio filho, adolescente. Morena vai às compras, cozinha com o pai, que é o cozinheiro oficial da nossa casa e me leva a fazer coisas que nunca tinha feito, como bolos e biscoitos. É levada a testar e descobrir sabores, cheiros, texturas. Sabe que o que está nas caixas é industrializado. Sabe que alguns alimentos contêm muito açúcar, outros, muito sal. E que isso não é muito ‘saudável’. Hoje faz suas próprias receitas. Ao ver que tínhamos batatas cozidas, por exemplo, pediu para não fazer purê, distribuiu as rodelas, pediu azeite, sal, queijo ralado e alecrim, criou sua receita e comeu dela repetidas vezes. Nossa casa não parece ter crianças – no que se refere ao que se convencionou ser uma alimentação infantil. Biscoito recheado, suco de caixa, salgadinhos, açúcar branco, não há. Não a proíbo que prove ou se alimente com eles, em caso de necessidade. Num aeroporto, por exemplo, ou no avião, não é tão fácil encontrar um suco da fruta. Isso moldou o paladar dela – quando está com alguém que come assim e resolve provar alimentos mega industrializados, dificilmente vai até o fim. Estranha o sabor. Mesmo para as famílias mais ocupadas e/ou numerosas não acho que seja impossível fazer um suco da fruta – espremer uma laranja, bater um maracujá, peneirar uma melancia. Fazemos isso desde que ela começou a alimentação complementar ao leite materno, aos seis meses de vida. Ouvi um dia desses um pai dizer que seu filho de seis anos estava viciado em salsicha. E me perguntei: como uma criança se vicia em salsicha? Por intermédio dos adultos, certamente. Bela Gil chamou a atenção para a nossa responsabilidade social, política e todas as que temos como cuidadores, para a questão. Faço o mesmo. Sem falar nas questões de saúde pública, também citadas por ela. Vamos fazer com que nossos filhos se viciem em comidas que possam nos orgulhar e não nos constranger, ao serem citadas - já que somos os vetores dos vícios. Vamos pensar em um corpo frágil, chegando, em desenvolvimento. Do que ele precisa? Qual nosso papel em suprir essas necessidades de forma adequada? Falar a verdade, criar uma cumplicidade, passar informação, sentir o prazer de espremer uma fruta, dar o exemplo, mudar nossos hábitos, compras, deixar a criança colocar a mão na massa – na comida que come, quando começa a fazê-lo, àquela que pode ajudar a preparar à medida que cresce. Na nossa casa tem dado certo.